• Sobre o processo de Registro do Choro como Patrimônio Cultural Brasileiro

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O processo de registro teve início em 2015, após a análise e a emissão de uma nota técnica referente à proposta apresentada em 2012 pelo Clube do Choro de Brasília, amplamente documentada e acompanhada por um abaixo-assinado de diversos músicos do país. A nota indicou em seu parecer a dimensão nacional do bem e incluiu no pedido a adesão de outros núcleos importantes do choro – como a Casa do Choro do Rio de Janeiro, o Conservatório de Música de Recife, o Clube do Choro de Santos e a Escola de Choro de Porto Alegre, que foram posteriormente anexados ao processo. Após a análise da nota técnica, o Conselho Consultivo do Iphan aprovou em 2015 a instauração do processo administrativo que dá início formal ao procedimento para o Registro. Em 2019 foi publicado o edital de chamamento público para a Instrução Técnica do Processo de Registro: neste edital, a proposta apresentada pela Associação Cultural dos Amigos do Museu do Folclore Edison Carneiro (Acamufec) foi aprovada com o início previsto para março de 2020, no entanto, esse início precisou ser adiado devido à pandemia de Covid-19, O processo técnico de instrução teve início no segundo semestre de 2020.

Durante a primeira etapa, de mobilização, além dos encontros e seminários, que detalharemos, também disponibilizamos um formulário para todos aqueles que quisessem se inscrever no processo, a fim de divulgarmos diretamente as ações de patrimonialização. Ao final de 2020, somamos em torno de 140 inscritos, de todo o país, número que dobrou com as inscrições para a seleção de assistentes de pesquisa realizada no início de 2021. Não podemos deixar de mencionar características particulares deste processo, como a realização de reuniões semanais (via plataforma on-line) com a equipe de coordenação e, entre março e agosto de 2021, com a equipe de pesquisadores, o que tornou a pesquisa particularmente dinâmica e colaborativa. Pretendemos detalhar as etapas nos tópicos seguintes, tomando como base os pontos anteriormente levantados.

Uma das primeiras etapas do trabalho foi a realização de um mapeamento extensivo, em plataformas on-line e em bibliotecas digitais de universidades públicas e privadas de todo o país, o que permitiu mapear 221 documentos – entre livros, artigos, dissertações e teses[1]. É interessante notar como o choro perpassa diversas áreas e subáreas de conhecimento, havendo pesquisas no âmbito de disciplinas como História, Sociologia, Antropologia, Letras e, evidentemente, Música. No âmbito da pesquisa em Música, o choro evidencia possibilidades de diálogos entre Etnomusicologia, Musicologia Histórica, Performance e Educação Musical, subáreas que convergem em torno desse objeto em comum, explorando abordagens diversas que ora focalizam um instrumento, um repertório, um compositor, uma cena, um modo de transmissão musical, uma discografia, dentre várias outras possibilidades de pesquisa. Fato é que esse primeiro levantamento evidenciou o que já suspeitávamos: a presença notável do choro nas universidades brasileiras, sobretudo no âmbito da pesquisa, além da amplitude e o aprofundamento da documentação de referência e a diversidade de abordagens de pesquisa sobre esse mundo da arte, direções que também buscamos seguir no processo de patrimonialização.

Desse modo, procuramos partir, num primeiro momento, dos representantes do choro que deflagaram o processo de patrimonialização, na qualidade de proponentes do registro – o Clube do Choro de Brasília e a Casa do Choro do Rio de Janeiro –, associações reconhecidas em âmbito nacional pelo tempo de atuação e pelo estabelecimento de redes duradouras. A partir dos contatos estabelecidos por cada uma dessas associações, aos poucos ampliamos nossas redes de mobilização da “base social” do choro, ou seja, de músicos, musicistas e demais agentes das comunidades do choro em todo o Brasil. As primeiras reuniões foram encontros de âmbito nacional, que contaram com a participação de representantes do choro de todas as regiões, e as seguintes foram feitas em âmbito regional, circunscritas à região Sul, à região Nordeste e à região Norte.

Paralelamente aos encontros de mobilização, desenvolvemos também a proposta de realizar seminários semanais on-line que pudessem congregar as comunidades do choro em torno de apresentações e discussões de temas de interesse comum, também como forma de promover encontros e trocas de experiências entre músicos e pesquisadores de todo o país. O primeiro ciclo de seminários ocorreu em novembro de 2020, dedicado à temática “Acervos e ensino do choro”, e foi muito importante para a ampla divulgação do processo. Uma das prerrogativas de cada sessão do seminário foi a de “misturar” representantes de diferentes regiões do país, justamente para promover discussões a partir de pontos de vista diversos. No que tange à temática dos acervos do choro, houve ainda o cuidado de se convidar atores sociais que refletissem a diversidade de tipologias de acervos existentes: acervos particulares, acervos públicos e acervos privados, nos mais variados graus de institucionalização, de conservação e mesmo de materialização[2]. Já nos encontros sobre o ensino do choro, foram apresentadas práticas de ensino em escolas, cursos livres, projetos e universidades. Dada a importância das ações de ensino, assim como das rodas e dos acervos de choro por todo o Brasil, esses são eixos que foram responsáveis por estruturar a pesquisa de campo, juntamente com as associações e demais lugares de performance, conforme detalharemos adiante.

Realizados às segundas-feiras à noite, os seminários on-line abordaram temáticas diversas e se tornaram um ponto de encontro semanal de chorões e choronas de todo o Brasil. O segundo e o terceiro ciclos de seminários foram realizados entre abril e maio de 2021, tendo respectivamente como temáticas “Memórias e cenas do choro” e “Movimentos e coletivos do choro”. Fechando o ciclo de quatro seminários, foi a vez da série “Instrumentistas”, realizada entre julho e agosto de 2021, com seções dedicadas a instrumentos específicos como Violão, Bandolim, Pandeiro, Flauta, Saxofone e Clarinete, Cavaquinho, Piano e Metais (Trombone, Trompete dentre outros instrumentos das bandas militares e civis), totalizando oito encontros que trouxeram as trajetórias de chorões e choronas de todo o país. Os seminários proporcionaram não só a apresentação de pesquisas e projetos importantes para o choro, como também fizeram emergir a diversidade de práticas e de concepções do choro, ou seja, suas “ressonâncias” que articulam os sentidos do patrimônio, de acordo com Gonçalves (2005). Além de proporcionar o diálogo entre os convidados presentes nas mesas, os seminários proporcionaram um espaço virtual de encontro para um público interessado que interagia pelo bate-papo, revendo amigos e saudando chorões e choronas conhecidos(as).

A partir de março de 2021, paralelamente à realização das entrevistas semanais para o documentário, outra frente de trabalho de campo se abriu para a elaboração de um inventário do choro em cada região do país: a equipe de pesquisa se expandiu com a contratação de oito pesquisadores e pesquisadoras[3], a maioria participantes das redes do choro em suas respectivas cidades. Dessa forma, o trabalho de mapeamento se ramificou de forma colaborativa e foi norteado por quatro eixos de pesquisa: (1) acervos; (2) ações de ensino; (3) associações e clubes; (4) rodas e lugares de performance. O trabalho se estruturou em torno de fichas referentes a cada um desses eixos de pesquisa, a serem completadas pela equipe de pesquisadores a partir de contatos e levantamentos em cada localidade, tendo como referência também os mapeamentos preliminares realizados na etapa anterior.

Em um processo experimental, cada uma das fichas foi elaborada e, em seguida, apresentada e discutida com a equipe em reuniões semanais, até chegarmos ao modelo a ser adotado. O inventário começou com o mapeamento de acervos, seguido de ações de ensino, associações e, por último, de rodas e de lugares de performance. Nas fichas de acervo, por exemplo, os campos a serem preenchidos referem-se à descrição geral e ao histórico do acervo, à indicação – se se trata de um acervo institucional ou pessoal –, ao estado e acessibilidade da coleção e às indicações para o plano de salvaguarda, entre outras informações relevantes. Esse inventário detalhado teve início em março de 2021, com previsão de duração de seis meses, até agosto de 2021. Nessa etapa foram mapeados 165 acervos, 86 ações de ensino, 48 associações ou clubes de choro e 131 rodas ou lugares de performance em todas as regiões do Brasil.

Uma das maiores preocupações desde o início do processo era a de tornar público este amplo mapeamento de pesquisa realizado ao longo de vários meses por pesquisadores e pesquisadoras locais, de forma a alinhar a pesquisa aos eixos das políticas públicas de patrimônio, que dizem respeito à produção de documentação como forma de salvaguarda das expressões culturais que constituem o patrimônio das comunidades, o que já se configura portanto como uma forma de salvaguarda do bem cultural. Ainda que soubéssemos que os resultados da pesquisa forçosamente não poderiam ser exaustivos (como identificar, por exemplo, as centenas de rodas organizadas de maneira tão dinâmica e fluida por todo o país?), a ideia de apresentar um retorno dos resultados de pesquisa para as centenas de comunidades de choro em todo o Brasil nos pareceu alinhada às perspectivas de retorno e responsabilidade social inerentes às práticas etnomusicológicas atuais (LÜHNING & TUGNY, 2016). Da mesma maneira, esse “retorno” da pesquisa às comunidades estudadas pretende ser o pontapé inicial para um banco de dados que possa ser continuamente alimentado e corrigido pelos próprios chorões e choronas de diferentes regiões do país. Nesse sentido, foram realizadas reuniões com a equipe técnica do Iphan e com os desenvolvedores de um plugin denominado Tainacan, criado pela equipe de pesquisadores coordenada pelo Prof. Dr. Dalton Lopes Martins, da Universidade de Brasília (UnB), que atua junto à plataforma WordPress para a criação de repositórios digitais, e que vem sendo utilizado com sucesso pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Nosso intuito é que o Banco de Dados sobre o processo de patrimonialização do choro se torne um grande acervo digital que possa ser “continuado” e alimentado por detentores, associações e clubes de choro.

Nesse processo de registro do choro como patrimônio cultural imaterial pelo Iphan, as três principais frentes de pesquisa – seminários temáticos, depoimentos para o documentário, mapeamento e inventário para o banco de dados – conseguiram fazer emergir vozes diversas de norte a sul do país sobre essa prática musical ao mesmo tempo dinâmica e perene.

Foram meses de escuta de diversas vozes sobre o choro. Não se almeja um consenso sobre sua unicidade nacional, sobre como é o choro ou sobre como ele deve ser. Sua ressonância latente aponta para a necessidade de cada vez mais investigar suas histórias silenciadas, assumir sua diversidade étnica e de gênero, valorizar seus mestres e suas particularidades regionais, ampliar as possibilidades de encontro, de diálogo, de aprendizagem, de prática, de invenção. O presente processo de patrimonialização busca estabelecer pontes sustentáveis em diálogo com redes do choro organizadas, cada qual à sua maneira, tendo em vista o protagonismo de seus artífices, suas múltiplas demandas e as legítimas reivindicações de reconhecimento e de salvaguarda.

Por fim, entre novembro e dezembro de 2021, foram realizadas seis reuniões técnicas com a participação de chorões e choronas de cada região do país, com o objetivo de restituição da pesquisa e de discussão das recomendações para a salvaguarda do choro. Tais reuniões serão mencionadas ao final deste Dossiê, junto à carta de recomendações de salvaguarda referente aos quatro eixos da pesquisa, produzida pelos participantes ao longo dos seis encontros.

A pesquisa de campo realizada no decorrer de 2021 – que originou o Inventário Nacional do Choro a ser detalhado a seguir – buscou mapear de forma ampla, tanto histórica como geograficamente, a rede nacional do choro a partir de quatro eixos de investigação: (1) acervos; (2) ações de ensino; (3) associações e clubes; e (4) rodas e lugares de performance (apresentado na seção anterior). Como resultado desse esforço, foi produzido um banco de dados, cujo objetivo principal é o auxílio na Instrução do Registro do Choro como Patrimônio Cultural pelo Iphan, além da implementação do plano de salvaguarda, possibilitando o retorno de partes essenciais da pesquisa realizada no âmbito deste processo aos músicos e às associações dedicadas ao choro.
O banco de dados, hospedado no projeto Acervos Virtuais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), também contou com a contribuição de diversas instituições como a Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), bem como a Casa do Choro, o Clube do Choro de Brasília e os coletivos e associações aqui representadas, dentre outras instituições que se somaram à rede.

O banco de dados pode ser acessado através do link:
https://acervosvirtuais.ufpel.edu.br/choropatrimonio

A implementação do banco de dados, a partir do Registro do Choro como Patrimônio Imaterial do Brasil, tem como premissa a criação de um sistema que permita a contribuição contínua de grupos, instituições e associações de todo o país, além de auxiliar esses coletivos no processo de acompanhamento das ações de salvaguarda a serem coordenadas pelo Iphan, envolvendo as diferentes comunidades do choro do país, através da criação de redes colaborativas e da pesquisa-ação. A proposta é, portanto, que a base seja continuamente atualizada e ampliada. Disponibilizado de forma on-line e gratuita, a existência do Inventário Nacional do Choro permite democratizar o conhecimento acerca dos modos de criação de valor (conhecimento vivo) mantidos pelas famílias de chorões e choronas, por clubes do choro, por escolas de choro. Disponibilizá-lo é também democratizar o conhecimento acadêmico produzido nos programas de pesquisa ligados a universidades e instituições federais, por meio da manutenção e da ampliação do banco de dados de forma inclusiva e, dentro do possível, mais representativa dessa manifestação musical brasileira.