Histórico/contexto
"Vidros Lascados Parte da resistência africana e afrodescendente à escravização se baseou na performance oral e corporal, envolvendo histórias (e não estórias), jogos, canções e dança. Algumas canções e histórias, assim como as danças, ironizavam os escravizadores, ou mesmo, não raras vezes, os amedrontavam. Outro exemplo vibrante é a expressão bantu, cantada na marcação da síncopa, para avisar aos camaradas a chegada do capataz durante o trabalho agrícola: ngoma vem! Mas a resistência envolveu, também, objetos e ferramentas fabricadas pelos escravizados. Africanos, africanas e seus descendentes nunca dependeram plenamente do que os escravizadores lhes “davam”. Eles criavam e ressignificavam objetos. Criavam tecnologias ancestrais. É o caso vidros lascados recuperados em uma das senzalas da Charqueada São João. As ferramentas de vidros lascados eram feitas a partir da reciclagem de garrafas, normalmente as de vinho. Eram utilizadas, sobretudo, para raspar e perfurar fibras vegetais e couros de animais, para trabalhar, em suma, várias superfícies macias ou duras, servindo, assim, às práticas culinárias e artesanais. É possível, também, que as tenham usado como arma para defesa pessoal, uma vez que um gume cortante de vidro pode ferir grave ou fatalmente um oponente. Para além dessas funcionalidades, não se pode descartar que algumas dessas ferramentas tenham sido sacralizadas, a fim de proteger indivíduos e as comunidades da senzala, ou, então, para invocar espíritos ancestrais e Orixás. As tecnologias ancestrais que permitiram a fabricação de ferramentas de vidro podem ser entendidas como linguagem criativa do corpo africano. Como criatividade corporificada. Podemos imaginar os gestos ancestrais que inventaram as ferramentas de vidro lascado, o som que emitiram ao serem fabricadas, tanto no ato de quebra das garrafas, quanto no soar macio e quase inaudível do polimento que afiava o gume desses instrumentos de vidro."