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Acervo Octávio Dutra (1884-1937): um manancial do choro no Sul do Brasil

Por Márcio de Souza – Prof. do Centro de Artes da UFPel – marcio_souza@ufpel.edu.br

Octávio Dutra nasceu na cidade de Porto Alegre (RS) em 1884, local onde residiu e atuou durante toda a sua vida artística. Iniciou sua trajetória musical como violonista e bandolinista em serenatas e saraus urbanos e compôs suas primeiras polcas e valsas no ano de 1900. Posteriormente, adquiriu formação musical teórica no Conservatório do Instituto de Belas Artes (1909-11), vindo a atuar exclusivamente na música por mais de 30 anos em diversos espaços culturais e sociais da cidade. Nesse período, mantinha-se financeiramente através de cursos de violão e bandolim, regência, arranjos e composições diversas e, da participação em conjuntos instrumentais.

Mesmo com o passar dos anos, após sua morte em 1937, o acervo de partituras de Octávio Dutra foi zelosamente guardado por sua esposa Diamantina, depois pela filha Dioctavina Dutra, que também tocava violão, e por último pela sobrinha-neta Sônia Paes Porto, uma guardiã do acervo do tio-avô por longos anos. Em meados dos anos de 1960 e 70, recebeu reforços com doações de partituras de ex-alunos que integraram a Orquestra Brasileira Octávio Dutra, organizada por seu sobrinho Voltaire Dutra Paes, até 1976. Em 1984, o pesquisador Paixão Côrtes revelou novas informações acerca da sua biografia e das antigas gravações com a publicação do livro “Aspectos da música e fonografia gaúchas”.

Somente em 1985, após ampla investida dos músicos Hardy Vedana, Carlos Branco e Arthur de Faria (1995) para descobrir as origens da história da música de Porto Alegre, o material foi localizado. Foi um fato intrigante, visto que nesse momento ainda se ignorasse a existência e a localização deste acervo. Em posse do material, o pesquisador Hardy Vedana escreveu a biografia “Octávio Dutra na história da música de Porto Alegre” (2000). Em 2009, o acervo foi cedido para a empresa Guarujá Produções para a realização do documentário “Espia só…” (2012). Em 2013, com a contemplação do projeto Rumos – Itaú Cultural, sob minha responsabilidade, o acervo foi transferido para o Centro de Documentação Musical do Conservatório de Música da UFPel para a devida higienização, restauração, acondicionamento e digitalização.

Historicamente, o acervo contém um manancial de documentos e fontes relacionadas à trajetória musical e experiência profissional de Octávio Dutra entre os anos de 1900 a 1937. Nesse espaço temporal, pode-se mapear e compreender a sua atuação através de documentos que o situam desde o período autodidata (quando ainda não sabia teoria musical); ao período de estudos no Conservatório de Música; nos contextos discográfico, carnavalesco e radiofônico. Pelas temáticas de sua obra também pode-se compreender, em parte, a circularidade e as transformações da música popular brasileira no Sul do Brasil. Muitas de suas composições contextualizaram representações do espaço social da cidade, da cultura e dos costumes da sociedade de sua época, bem como acompanharam o advento, o uso e o desenvolvimento de novas tecnologias, como o cinema, o disco e o rádio.

O acervo está constituído em sua grande maioria por partituras instrumentais, versos e revistas musicais autorais. A partir de uma classificação preliminar, pode-se encontrar músicas em manuscrito autógrafo, partituras em manuscrito (cópia não autógrafo), partituras impressas, manuscritos de arranjos e orquestrações, diversos álbuns encadernados com composições em manuscrito autógrafo ou cópia. Outra parte contém letras avulsas em manuscrito autógrafo, letras avulsas impressas e revistas musicais em manuscrito autógrafo ou cópia. A terceira parte contempla os assuntos gerais, contendo recortes diversos de jornais da época (notícias, crônicas, necrológio), anotações diversas em manuscrito autógrafo, fotos e outras imagens. A diversidade do material encontrado no acervo Octávio Dutra foi disponibilizada a partir das seis coleções que compõe o acervo:

Cadernos de letras e versos

Cadernos de Partituras 

Partituras de Octávio Dutra

Revistas Musicais

Arranjos e Orquestrações

Reclames e Programas de concerto da OFIPPA

Ao manusear o acervo pode-se contextualizar uma prática de época utilizada por Octávio Dutra: a compilação de cadernos manuscritos que eram utilizados para ensaio nos grupos de choro, cordões de carnaval, orquestras de teatro de revista, orquestras radiofônicas e material didático, além de um raro álbum de recortes de jornal, possivelmente organizado pela filha Dioctavina. 
Desse montante, desperta interesse os cadernos de choros e valsas, visto que, além das partituras, contém o nome do grupo musical de origem (Terror dos Facões, Batutas, Vampiros, Guarda Velha, etc.), índice, indicação de instrumentos (flauta, violino, sax, etc.) e os nomes ou apelidos dos integrantes, como Lombriga, Lua Cheia, Pato, Periquito, etc. Pela época que foram redigidos, pelo formato e conteúdo não se tem dúvida da raridade deste material, visto que tal prática nos remete aos antigos cadernos de choro guardados por Jacob do Bandolim, por exemplo.

Abaixo a lista dos álbuns e cadernos pertencentes ao Acervo Octávio Dutra:

NOTÍCIAS DE OCTÁVIO DUTRA. Álbum compilado por Dioctavina Dutra. Críticas, crônicas e notas de arte de diversos jornais. Porto Alegre, s.d. [manuscrito].
ÁLBUM (CARNAVAL DE 1928). Bloco Passa fome e anda gordo. Músicas de Octávio Dutra. Álbum compilado pelo autor contendo letras e músicas. Porto Alegre, s.d. [manuscrito]. 
ÁLBUM DE MODINHAS, lundus, cançonetas, fados, monólogos, etc, etc, – de diversos autores – repertório de Octávio Dutra(nº 01). Porto Alegre, s.d. [manuscrito].
C. C. OS BATUTAS. Músicas de Octávio Dutra. Álbum compilado pelo autor contendo letras e músicas. Porto Alegre, s.d. [manuscrito]. 
CADERNO Nº 01. Repertório de Diamantina Dutra. Porto Alegre, s.d. Álbum compilado com repertório de diversos autores. Porto Alegre, s.d. [manuscrito].
CANÇÕES. Versos de diversos autores. Repertório de Octávio Dutra. Álbum compilado pelo autor contendo trinta e oito músicas. Porto Alegre, s.d. [manuscrito]. 
CHOROS, POLCAS E TANGOS. Caderno nº 02. Álbum compilado pelo autor contendo trinta e oito músicas. Porto Alegre, 1922. [manuscrito].
GUARDA VELHA Nº 01. Repertório de Octávio Dutra. Álbum compilado pelo autor contendo 32 músicas. Porto Alegre, s.d. [manuscrito]. 
VALSAS DE OCTÁVIO DUTRA. Álbum compilado pelo autor contendo trinta e uma valsas. Porto Alegre, s.d. [manuscrito]. 
VALSAS DE OCTÁVIO DUTRA. Repertório do Terror dos facões. Álbum compilado pelo autor contendo trinta e oito valsas. Porto Alegre, s.d. [manuscrito]. 
VERSOS (CANÇÕES) de Octávio Dutra. Modinhas, lundus, cançonetas, fados, monólogos, etc, etc. De diversos autores. Nº 01. Repertório de Octávio Dutra. Álbum compilado pelo autor contendo setenta e quatro músicas. Porto Alegre, s.d. [manuscrito]. 
VERSOS (CANÇÕES) de Octávio Dutra. Monólogos, modinhas, fados, romanzas, etc. Repertório de Octávio Dutra. Álbum compilado pelo autor contendo quarenta e oito músicas. Porto Alegre, s.d. [manuscrito]. 

choro no Acervo Octávio Dutra

No início da Primeira República os gêneros populares-eruditos praticados desde a segunda metade do século XIX tornaram-se um problema de terminologia. Ao se analisar as tendências musicais urbanas no tempo de Octávio Dutra, percebe-se um intenso diálogo musical entre os gêneros em voga. Nessa época, os músicos já haviam mesclado antigos gêneros como o 
lundu e a polca, e a valsa serenata podia ser denominada e reconhecida como “brasileira”. 
Igualmente ao que ocorria no centro do país, percebe-se que Dutra empregou e conservou em seu repertório o tango brasileiro, o maxixe e o choro. No entanto, receberam denominações variadas como tango-brasileiro, polca-tango, polca-choro ou simplesmente choro. Também foi influenciado pela música das jazz-bands americanas, visto o emprego de novos gêneros musicais e de instrumentos de metal nas formações artísticas. Embora tenha levado a fama de boêmio e chorão, acompanhou as tendências musicais dos anos de 1920 e 1930, quando a marcha carnavalesca e o samba, ainda com ares de maxixe, passaram a integrar o “menu” do seu repertório e das suas composições. A partir da criação da orquestra Guarda Velha nos anos de 1930, o compositor passou a sintetizar um panorama sonoro de todo o seu repertório.

Nesse sentido, semelhante aos grandes centros urbanos como o Rio de Janeiro e Salvador, berços do choro e do samba, pode-se constatar que a cidade de Porto Alegre, embora situada no extremo sul do país, também mantinha uma relativa sintonia na vanguarda dessa fusão de gêneros como a polca e o tango, o maxixe e o samba. Inclusive no quesito arranjo, o grupo Terror dos Facões, a partir da escuta das gravações de época, apresenta uma pioneira tentativa de organização.
No repertório de Octávio Dutra pode-se encontrar uma boa quantidade de composições que se enquadram historicamente no que se denominou como a “segunda geração” de chorões, o que se confirma com a escuta de alguns fonogramas em 78 r pm. Nessas gravações históricas, diferentemente das primeiras polcas compostas por Dutra em torno de 1900, na polca Olha o Poste!, por exemplo, onde percebe-se a presença de uma interpretação mais próxima do choro através da construção melódica, do fraseado da flauta, da base de acompanhamento organizada com cavaquinho, bandolim e violão, bem como dos baixos típicos do violão, que embora ainda sem os contrapontos, caracterizam os princípios de um Regional de choro.

Nas gravações de 1913, o “Terror dos facões” estava formado por Arnaldo Dutra (cavaquinho), Creso de Barros (flauta), Honório da Silva (violão), José Xavier Bastos “Cazuza” (flauta) e Octávio Dutra (violão e bandolim). Era um grupo formado por familiares, colegas e discípulos do compositor. Durante sua trajetória, o grupo manteve diversas formações. De acordo com o folclorista Paixão Côrtes, historicamente, o grupo foi oriundo do Trio do Choro e pertenceu à chamada Geração Gramofone. Como observa Hardy Vedana, nos anos de 1920, o Terror dos facões passaria a se chamar orquestra Os Batutas.  

Em geral, grande parte da sua obra musical encontra-se contextualizada pela sonoridade dos antigos grupos de choro. No “hino de guerra” do grupo Terror dos facões, a curiosa e híbrida polca-marcha intitulada “Sempre nós…”, a primeira e a segunda partes, bastante virtuosísticas, soam genuinamente como uma polca-choro. No entanto, a terceira parte, subitamente mais melódica (e com letra jocosa) aproxima-se de uma marcha carnavalesca, visto que o grupo também participava ativamente do carnaval de rua porto-alegrense dos anos de 1910 e 1920. 

A ideia de fusão desses dois ritmos binários e de reunir trechos instrumentais e vocais é bastante peculiar na história da música brasileira e resultou numa mistura interessante: virtuosismo, ritmo vibrante, frases melódicas e traços humorísticos, o que de fato, parecia caracterizar o grupo de Octávio Dutra. O flautista Dante Santoro gravou “Sempre nós” junto com os Trigêmeos Vocalistas, fato que tornou-a conhecida nacionalmente através do disco e do rádio a partir dos anos de 1940. Registra-se ainda uma edição impressa para Acordeon, nos anos de 1950, pela editora paulista A Melodia.

Durante sua trajetória, Octávio Dutra escreveu também muitas homenagens musicais para amigos, colegas e artistas. “Meu ciúme…” é um samba-canção (com letra) repleto de contrapontos em homenagem a Pixinguinha. Ambos se conheceram em Porto Alegre em 1927. Em 1935 compôs uma polca-choro regionalizada intitulada “Sai da Frente! ”, quando do seu encontro com o violonista Garoto (Aníbal Augusto Sardinha) durante uma temporada artística em Porto Alegre.
O gênero tango brasileiro foi também muito empregado por Octávio Dutra em obras escritas para diversos instrumentos e formações. No seu Estudo do dedo polegar, para violão solo, igualmente ao estilo da primeira parte de Odeon de Nazareth, a melodia encontra-se no baixo. No tango brasileiro Terror dos Facões, o ritmo sincopado oscila entre a melodia e baixo, fazendo diversas costuras. Foi escrita no final dos anos de 1910, mas, já soa como um autêntico choro, tanto na forma, no fraseado, na rítmica, quanto pelas modulações harmônicas. Nesse sentido, junto com a polca-choro Mágoas do violão, ambas representam o ápice das obras escritas por Octávio Dutra dentro do que se passou a denominar choro na música urbana brasileira da primeira metade do século XX.  
Enfim, o acervo Octávio Dutra contém quase uma centena de choros, num montante de mais de quatrocentas obras. A possibilidade de acesso ao acervo já é uma realidade e novas pesquisas podem revelar ainda mais detalhes da produção musical e da prática social do choro no Sul do Brasil. Muitas questões acerca da sua obra, da trajetória e do campo de atuação ainda estão por ser investigadas. As mediações culturais que o compositor estabeleceu, o círculo de artistas com os quais manteve contato e as parcerias composicionais também apontam para um grande potencial de pesquisas sobre o choro na primeira metade do séc. XX.
Referências:
CORTES, Paixão. Aspectos da música e fonografia gaúchas. Porto Alegre: Edição do autor, 1984.
FARIA, Arthur de. A música de Porto Alegre: as origens. Porto Alegre: SMC, 1995.
PAES, Pedro. Terror dos facões. In: Memórias musicais. Encarte CD. Rio de Janeiro: Sarapuí Produções/Petrobrás, s.d
SOUZA, Márcio de. Mágoas do violão: mediações culturais na música de Octávio Dutra (1900-1937). Porto Alegre. 2010. Tese de doutorado. PUCRS.
VEDANA, Hardy. Octávio Dutra na história da música de Porto Alegre. Porto Alegre, Fumproarte, 2000.